Primeiro o Evangelho da dignidade humana, depois as leis!

Mas nós sabemos também que as festas, assim
como a memória e as leis que nasceram para garantir a liberdade e a
fraternidade, podem ser capturadas pelas pessoas e instituições que desejam
perpetuar seu poder dominador sobre as pessoas. Isso aconteceu com as leis que
nasceram da aliança de Deus com o povo hebreu, no caminho para a terra
prometida, e, infelizmente, aconteceu e acontece com o Evangelho vivido e
anunciado por Jesus Cristo: ele continua sendo usado para oprimir gente já
quebrada por tantas dores, para subjugar pessoas e povos aos tiranos, para
distrair os oprimidos das necessárias lutas, para angariar votos, para arrancar
dinheiro aos pobres e enriquecer pastores e igrejas.

Para completar o escândalo, os discípulos de
Jesus atravessam campos de trigo e recolhem sem cerimônia os grãos que
necessitam para matar a fome, e isso no sacratíssimo dia de sábado... Se
levamos a sério a resposta de Jesus ao questionamento dos defensores da lei, fazendo
isso os discípulos afrontam duas leis: a lei que proíbe qualquer trabalho no
dia de sábado e a lei que impede a violação da propriedade privada. É isso que
transparece na referência de Jesus a Davi e seus companheiros, que, estando com
fome, se apropriaram das oferendas que pertenciam exclusivamente aos
sacerdotes.
No fundo, o que Jesus quer discutir e colocar
em evidência, inclusive na cena seguinte, é o espírito e a finalidade das leis
e instituições: elas proíbem, permitem e ordenam fazer o bem ou fazer o mal,
salvar uma vida ou matá-la? Para Jesus, estômago febril de uma pessoa pobre e faminta
é mais sagrada que todos os templos, leis e instituições. Para salvar uma
pessoa ou um povo em situação de risco, o respeito à lei se torna secundário.
Além disso, faz parte da maturidade e da liberdade cristã desmascarar
corajosamente as leis, costumes e instituições que não fazem outra coisa que
oprimir os pobres.
Os acontecimentos recentes da política e do
judiciário brasileiros estão a demonstrar que a lei só é pesada e tem força
quando se trata de punir os pobres e quem participa das suas lutas. A lei não é
parâmetro absoluto para a justiça! Basta lembrar que a escravidão negra foi
legal no Brasil; o apartheid foi legal na África do Sul; a mutilação sexual das
mulheres ainda é legal em alguns países árabes; a prisão de Nelson Mandela,
como a de Lula, não foram feitas ao arrepio da lei; o congelamento dos
investimentos na saúde e na educação foram atos legais, assim como a desmantelamento
dos direitos trabalhistas...
Afirmar isso não é anarquia ou rebeldia
adolescente, mas Evangelho de Jesus Cristo! É claro que o Evangelho da
liberdade é um tesouro que os cristãos e suas Igrejas carregamos em vasos de
barro, com o risco de quebrá-lo ou trancafiá-lo em cofres invioláveis, longe da
vida. Mas a luta para sermos libertária e responsavelmente fiéis a esse
Evangelho nos insta até a morte! Como Paulo, no cumprimento dessa sagrada
missão, somos atribulados, mas não desanimamos; enfrentamos dificuldades, mas
nada tira nosso ânimo; somos perseguidos, mas encontramos consolo; caímos, mas
levantamos e prosseguimos.
Jesus de Nazaré, peregrino nos santuários das
dores e lutas dos humildes e dos humilhados! Ajuda teus discípulos e discípulas
a não fazer do teu Evangelho uma lei, a não transformar teu vinho novo em
vinagre azedo e tua liberdade em novas dominações. Faz ressoar sempre mais em
nossos ouvidos a Boa Notícia que anunciavas com palavras e gestos nos caminhos
e sinagogas da Galileia, e dá-nos coragem para permanecer fiéis e solidários nas
lutas do povo e vigor para denunciar todas as armadilhas que, de forma
sorrateira ou escancarada, os poderosos colocam nos seus caminhos. Amém! Assim
seja!
Itacir Brassiani msf
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