A vingança implacável e violenta hoje é quase
uma exceção e, por isso, quando ocorre, torna-se notícia. Mas isso não quer
dizer que as tensões tenham sido resolvidas e que os débitos tenham sido realmente
perdoados e eliminados da convivência social. Os débitos e ofensas tem hoje uma
conotação mais psicológica e social que moral, e às vezes se diluem numa
situação que se criou sem culpa. Assim, muitos pensam que os pobres, os negros,
as mulheres, os indígenas e outros, devem se contentar com um lugar subalterno
e marginal, e não são perdoados quando ousam questionar esta ordem
desordenada...
A parábola que Jesus propõe no evangelho deste
domingo parte de uma pergunta que Pedro faz, como sempre, em nome dos
discípulos: até quantas vezes devemos perdoar os irmãos e irmãs? Por trás da
pergunta está a experiência viva de uma comunidade que enfrenta situações de
tensão, de ofensa e pecado. Pedro não escamoteia esta situação, mas pensa que
perdoar até sete vezes seja um inequívoco e suficiente sinal de generosidade.
Efetivamente, essa já seria uma radical e corajosa inversão da postura de
Lamec, que propunha vingar sete vezes quem agredisse Caim (cf. Gn 4,24).
A resposta de Jesus é contundente: “Não até
sete vezes, mas até setenta vezes sete vezes!” Sua intenção é clara: o perdão
aos irmãos e irmãs não deve ter limites, pois não é uma questão de números, mas
de espiritualidade e de ética. E, para ilustrar aquilo que afirma, Jesus conta
uma parábola, na qual contrapõe a pratica esperada de um cristão com a de um
empregado que, mesmo tendo uma grande dívida perdoada por seu patrão, se nega a
perdoar uma pequena dívida do seu companheiro. As ações do rei destoam do
ensino de Jesus Cristo, mas Jesus não se preocupa com nossos fajutos pudores
morais...
Precisamos também superar uma visão moralista
e superficial das ofensas e débitos. A dívida do escravo da parábola é
absolutamente impagável: 10 mil talentos equivalente ao tributo que o rei
Pompeu exigiu de Israel depois de conquistá-lo! Ademais, o foco do ensino de
Jesus nesta parábola não é o nosso pecado, mas o pecado ou a dívida dos irmãos.
Muitos pensam que as pessoas nas escalas inferiores devem obediência e respeito
às das pessoas das escalas superiores; que os pobres devem se contentar com as
migalhas mal-humoradas dos ricos; que os leigos devem se submeter aos ministros
ordenados...
O núcleo do ensino de Jesus é a conexão
indissociável entre receber perdão e dar perdão. E isso é lustrado na relação
que a parábola estabelece entre o perdão de uma enorme dívida, que o empregado
recebe incondicionalmente do rei, e a sua falta de compaixão para com o
companheiro que lhe devia algo insignificante. Esse empregado se mostra surdo e
indiferente aos apelos do irmão, e o trata com violência (agarra, sufoca e joga
na prisão). Até seus companheiros ficam impressionados diante de tanta
violência. É isso que faz o rei voltar atrás e revelar que sua compaixão não
era sincera nem profunda.
É sobre isso é que Jesus chama a atenção: “É
assim que o meu pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de
coração ao seu irmão!” Se a vontade de Deus, que é estender seu perdão a todas
as relações humanas, não for levada a sério, ele se verá forçado a agir como o
rei da parábola. Aqui Deus não é o ‘rei dos céus’ mas o ‘pai que está nos
céus’, e enquanto pai, nutre e testemunha um amor indiscriminado (cf. Mt
5,45-48), um amor que responsabiliza os discípulos. A misericórdia de Deus é um
dinamismo que deve sustentar um modo de vida também misericordioso nos
discípulos.
Quem não consegue perdoar, não alcançou a verdadeira
liberdade. Viver sob o ressentimento, cobrando eternamente as ofensas
cometidas, exigindo o pouco que os outros devem, é uma terrível escravidão que
impede nosso amadurecimento humano e espiritual. Paulo diz que que somos nós
que devemos amor ao próximo e não eles a nós (cf. Rm 13,8), e pede que sejamos
acolhedores e compreensivos com aqueles que se mostram mais fracos na fé. Ele nos
ensina que o núcleo da fé não é nossa honra ou nossos méritos, mas Jesus Cristo
e seu Reino. “Ninguém vive para si mesmo ou morre para si mesmo. Se estamos
vivos, é para o Senhor que vivemos, e se morremos, é para o Senhor que
morremos...”
Deus pai e mãe, o resumo da tua palavra é a
verdade (cf. Sl 119/118,160). Hoje tua Palavra nos ensina que o perdão, tanto
quando é recebido quanto quando é dado, é um dom que nos faz livres e resgata a
igualdade essencial de todas as pessoas. Que teu Espírito e a participação na
eucaristia, a mesa dos iguais, dos pecadores reconciliados, nos liberte da ira
que mutila, das cobranças infantis, das acusações desequilibradas. Faz da nossa
comunidade um laboratório de perdão e de igualdade, e, da Igreja inteira, um
movimento capaz de fecundar o mundo e a história com a força do perdão. Assim
seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Nenhum comentário:
Postar um comentário