“Prova de amor maior
não há que doar a vida pelo irmão!”
O
comércio não sabe o que fazer com esta sexta-feira, e um clima estranho envolve
pessoas e cidades. Até as pessoas mais indiferentes intuem que algo
inexplicável aconteceu e acontece nesse dia. Uma multidão se reúne nos templos.
É gente experimentada na dor, gente que percebe que neste dia se revela o que
há de mais profundo no ser humano e que há de mais belo no coração de Deus. O
mistério do mal atinge sua força mais terrível. A humanização de Deus atinge
seu ponto mais luminoso. A entrega do ser humano a Deus se expressa em seu grau
máximo.
Como
todos os escravos e servos, Jesus não tem aparência e beleza que possa atrair
os olhares. Ele é como uma raiz em terra seca, como um indivíduo do qual
escondemos o rosto. “Não parecia gente, tinha perdido a aparência humana.” Mas
sua vida é semente, tem futuro! O Servo fiel não perde sua vida, pois a dá
livremente e, por isso, prolonga sua existência. Ele carrega nas costas a
exclusão e o desprezo de muitos, e, por isso, a luz brilha em seu rosto e em
todo seu corpo de servo. Ele confia seu destino nas mãos daquele que é o
segredo da vida e assim vive naqueles que servem.
Nós conhecemos
muito bem as tramas e traições que levaram à prisão e condenação de Jesus. São
opções e atitudes que revelam o mistério da iniquidade e sua força nas pessoas
e nas estruturas sociais. É um mal nada abstrato, que se expressa nos costumes,
nas leis, nos medos, em todas as formas de ambição. Um mal que assume feições
de cinismo, como quando as autoridades religiosas, tendo decidido matar Jesus,
não entram no palácio do governador para não se tornrarem impuras... É este inexplicável mistério da iniquidade que
faz com que seja noite às três horas da tarde...
Jesus não
parece disposto a defender-se. Tem cosciência de que nasceu e veio ao mundo
para dar testemunho da verdade, para tornar palpável e digno de crédito o amor
fiel de Deus pelas pessoas negadas em sua dignidade. Pilatos manda torturá-lo
e, depois, o apresenta ao povo: “Eis o homem!” Fixemos o olhar neste personagem
que realiza em grau pleno a vocação de todo ser humano. Nele descobrimos que a
pessoa humana atinge sua plenitude quando não recua no propósito de dar a vida
e de servir, quando não abre mão da solidariedade com as pessoas negadas em sua
dignidade.
O ser
humano maduro e liberto não é o ‘amigo de César’, a pessoa age sem autonomia,
nem a autoridade religiosa, que ordena por medo, mas Aquele que transcende os
interesses individuais e se põe a serviço de Deus e do seu projeto. Por isso,
do alto da cruz, Jesus diz que, no seu corpo feito dom, a criação chega ao seu
ápice: “Tudo está consumado.” Nele Deus chega ao máximo de si mesmo e se supera
no esvaziamento. Nele o ser humano vence todos os limites e se faz dom e
semente fecunda nas mãos de Deus. Nada há de mais amável e desejável que isso!
Bendito seja Deus!
“O que é que vocês estão procurando?”,
perguntou Jesus aos primeiros discípulos (Jo 1,38). E hoje, nesta sexta-feira
da paixão, o que buscamos nós? Aqui só é licito buscar forças para caminhar na
fé e perseverar no seguimento de Jesus, o amigo e servidor da humanidade. Do
alto da cruz ele se dirige a Maria e lhe confia João: “Mulher, eis aí teu
filho!” E, dirigindo-se ao discípulo, diz: “Eis aí tua mãe!” Assim, aos pés da
cruz nasce uma nova família, não mais restrita
aos laços de sangue ou de interesses mesquinhos, mas servidora de todos os
humanos seres que querem viver e promover a vida.
É por
isso que nesta santa sexta-feira nossa oração se abre numa universalidade que
não deveria estar ausente de nenhuma celebração: rezamos pela Igreja, pelo papa
e todos os ministros, mas também pela união das diferentes Igrejas cristãs,
pelos judeus e pelos não cristãos, pelos que não acreditam em nada, pelas autoridades
e pela humanidade sofredora. Diante do crucificado, filho da humanidade e filho
de Deus, aprendemos que os muros e fronteiras religiosas, políticas, econômicas
e culturais não fazem o menor sentido e virarão ruínas. Pertencemos à
humanidade, temos um destino comum.
Diante de ti, Irmão da humanidade sofredora e
servidora, prostramo-nos agradecidos e comprometidos. Nossas chagas e culpas
pesam sobre teus ombros, mas o dom do teu amor sem fronteiras nos regenera. Tua
mãe e teu amigo nos acolhem numa comunidade-semente de um mundo novo, e a água
que brota do teu lado aberto nos livra de todos os medos. Beijamos enternecidos
tuas chagas, pedindo que teu Espírito impeça que este beijo seja de traição. E
assim seremos capazes de beijar, abraçar e acompanhar a imensa caravana dos
sofredores e servidores que só podem esperar em ti. Assim
seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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