Depois de
quase três meses marcados por liturgias muito especiais, dinamizadas pelo
espírito da quaresma e da páscoa, voltamos ao tempo comum, ao belo e exigente
desafio da vida cotidiana. Abramos a mente e o coração ao ensinamento de Jesus,
mesmo que inicialmente nos choque e escandalize. Jesus não tem prazer em
colocar pedras na estrada do nosso amadurecimento na fé... Na verdade, ele quer
nos ajudar a perceber as lutas que este percurso exige e as amarras que
precisamos desfazer, inclusive aquelas inconscientes ou que assumem a aparência
de piedade.
O atual e
inesperado ressurgimento das práticas de exorcismo, acompanhadas de um indisfarçável
desejo de amedrontar e dominar, podem nos induzir a pensar que o núcleo do
evangelho deste domingo seja o combate ao diabo. Na verdade, o que temos na
narração de Marcos é a radicalização e a explicitação do conflito entre a
prática libertária de Jesus e o fechamento ideológico das elites religiosas,
agarradas à defesa do seu poder de domínio. Precisamos distinguir entre a
realidade e a linguagem: a linguagem é apocalíptica, mas a realidade é um
conflito político e social.
Jesus
havia desmascarado a escravidão mantida pela ideologia do templo curando um
paralítico e declarando-o sem culpa diante de Deus, calando e expulsando o
expírito que fazia calar um doente, purificando um leproso e enviando-o aos
sacerdotes, curando os doentes que se aproximavam... Os escribas contra-atacam para
neutralizar sua ação desestabilizadora, identificando Jesus com o o diabo,
protótipo dos inimigos do ser humano. Pretendendo ser os únicos representantes
de Deus, os escribas e doutores da lei dizem que aquele que os desmascara é guiado
e motivado por um espírito diabólico...
Jesus
entra neste jogo de linguagem e fala do reino de satanás como a acentuação simbólica
das práticas opressoras da sociedade judaica. Ele se defende atacando com as
armas dos próprios adversários! Entra no jogo linguístico dos seus opositores
para “puxar o tapete” e mostrar a contradição em que estão atolados.
Ironicamente, diz que se agisse mesmo em nome do diabo, o reino de satanás
estaria dividido e fadado à ruína. Jesus e os pobres libertados interpretam sua
ação como obra libertadora e regeneradora de Deus.
Mas o
clímax da disputa está na afirmação indireta de que os verdadeiros pecadores,
aqueles que estão irremediavelmente condenados, são os próprios escribas e
doutores da lei, a elite que desqualifica a ação divinamente libertadora de
Jesus dizendo que é diabólica. Esse grupo é réu de um pecado eterno, está coberto
de impureza e envolvido numa cegueira que não permite que veja um palmo à
frente do nariz. Os membros dessa elite pecam contra o Espírito Santo, iludem a
si mesmo e aos outros dizendo que é mau e escravizador aquilo que na realidade
é bom e libertador.
É no
quadro deste conflito que podemos compreender a tensão de Jesus com seus
familiares. Eles haviam tomado conhecimento daquilo que Jesus fazia e dizia,
sentem-se importunados pela multidão que invade sua casa, e começam a temer
pela integridade de Jesus e pelo bom nome da família. Eles têm a nítida
impressão de que Jesus enloqueceu, e decidem pôr um fim nisso tudo. Parece que
a mãe e os irmãos evitam ultrapassar o círculo dos discípulos e chegar perto de
Jesus. Dão até a impressão compartilhar da visão dos escribas, e tentam fazer
Jesus interromper ou desistir da sua missão.
A família
patriarcal, centrada na figura masculina e nos laços de sangue, era um dos
eixos da sociedade antiga, um dos anéis da corrente da dominação, uma célula de
reprodução de uma sociedade excludente e intolerante. Jesus dá mais um passo na
superação do sistema de opressão que impede a vida e a liberdade do povo, mas
não se detém na crítica destruidora das instituições, dos modelos de
relacionamento. Ele coloca Deus no lugar da autoridade patriarcal; substitui a
estreiteza dos laços de sangue pelos vínculos que brotam da condição humana
compartilhada. Do ponto de vista do Evangelho, Deus e o seu Reino são absolutos,
e todas as instituições e autoridades são transitórias.
A ti, Jesus de Nazaré, irmão de todos os homens e
mulheres que se regeneram à luz do Reino, dirigimos nosso olhar e nossa prece.
Fortalece nossa vontade, a fim de que tenhamos a coragem de romper com os laços
que nos amarram a nós mesmos e aos sistemas que oprimem. Amplia o círculo da
nossa comunhão, para que inclua todos os seres humanos, começando pelas vítimas
da seca de nordeste e chegando aos povos ribeirinhos atingidos pela cheia do
rio Amazonas. E faz com que nossas comunidades sejam uma família de homens e
mulheres iguais. Assin seja! Amém!
Itacir Brassiani m
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