Na
busca desenfreada de corresponder às imposições e anseios da ordem econômica, social
e política do tempo presente, percebe-se uma acentuada tendência ao abandono do
ser, desde o pessoal ao coletivo. O comando é para acentuar a curvatura do
indivíduo, como dos diversos grupos humanos, frente ao imperialismo devastador
que nivela a todos, formatando-os conforme os interesses do regime vigente. A
diversidade humana torna-se objeto de massificação: não existem rostos, nem
nomes ou singularidade de vida. O poder temporal dominante revela-se na
angústia e na convulsão de quem, cativo, também aspira à real liberdade de
criatura.
Se
há poder deturpador e escravagista, também há o secreto clamor, sob a forma de
silêncio, que vai, de olhar em olhar, de toque em toque, permitindo e produzindo
o caminho de um novo amanhecer: eis o empreendimento que os cativos, de todos
os tempos, testemunham sobre
os inimigos e opressores.
Assim compreende-se o Tempo da Quaresma: consciência da
realidade de si e do mundo, com foco e confiança naquele que veio libertar a
todos da escravidão, da ignorância e dos erros, propondo à humanidade a
parceria da Aliança, rumo à terra prometida, sem males, de antecipado paraíso.
A nova ordem é escutar o Primogênito – Verbo eterno - que,
na percepção e compreensão humanas, balbucia com determinação, qual renovado sopro
criador, uma nova freqüência em nossa interioridade, perpassando nossos
sentidos e ações. Ele se faz silêncio como quem aparentemente dorme em meio aos
tumultos e tempestades da vida, mas cuida com vigor e serenidade de quem, com medo,
perece, acalmando a procela conforme a fé dos que com ele navegam nos mares da
vida. Ele mesmo é a bonança de paz, segurança e unidade: promove a continuidade
da nova criação, pelo mistério e méritos de sua Paixão, Morte e Ressurreição.
A liturgia quaresmal torna-se exercício de assimilação e reconhecimento
da misericórdia que é manifestada no interior de cada criatura, repercutindo,
de forma particular, na pessoa de cada batizado, pela ação vivificante do
Espírito: memorial e compromisso de novos céus e nova terra, com aguçado olhar contemplativo
via a experiência transfigurante e ressuscitadora de quem, no silêncio,
permite-se a regeneração e a reconquista do paraíso interior.
A Palavra é a referência para a atenção e escuta, no
silêncio da criatura que se entrega à obra salvadora do Pai, pelo Filho, na
unidade do Espírito. De cada criatura é necessário o princípio da disposição
interior e do renovado respirar, com atitude silenciosa e contemplativa de quem
crê e reconhece a voz daquele que foi enviado dos céus como carne da nossa carne,
sendo o mediador da plena comunhão do Criador com os seres criados.
O dar graças, continuamente, pela Igreja celebrante, traduz-se
no reconhecimento da obra salvadora por parte dos fiéis, compromissados em
dilatar, neste mundo, a comunhão com o eterno. Comunhão que se dá via fraternidade
universal: da dominação e escravidão ao reconhecimento e liberdade de ser
criatura amada por Deus, chamada a viver e conviver com os semelhantes, na
integração das diferenças; dos ruídos massacrantes ao silêncio restaurador e
fortificador, na missão de promover a vida em abundância para todos.
Que este Tempo da Quaresma seja um verdadeiro
reconhecimento à VIDA, rumo ao essencial e festivo brinde pascal: eis o
autêntico empreendedorismo cristão!
Fr. José Moacyr Cadenassi, OFMCap
(Artigo publicado na revista Vitoria)
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